Contar histórias é um dom que um dia eu espero alcançar.
Meu tio contava histórias muito bem. Sabia valorizar cada
cena, cada pausa para tirar de nós o mais profundo suspiro de agonia do que
viria depois.
Certo dia ele chegou tarde à casa de minha avó, com um saco
de mandioca nas costas e outro com um bicho amarrado. Ficamos todos curiosos
para saber o que estaria ali dentro. Seria um leitão? Um gato do mato? Era um
tatu. Um tatu-canastra, hoje em risco de extinção. Um tatu bravo que meu tio foi
contando como achou.
- Eu estava vindo para cá com a
caminhonete e parei no meio da estrada para descansar um pouco, beber um pouco
d´água antes de seguir viagem. Em dias quentes, viajar em chão de terra parece
que acalora mais a gente.
Quando pus a ligar o carro, ouvi um gemido estranho.
Pois o tatu havia entrado debaixo da caminhonete e, sabe lá como, ficado preso
no fundo. Até agora estou sem entender como o bicho foi parar lá. O fato é que o
peguei no colo e coloquei-o na beirada do caminho e já ia pegando o volante,
quando vi o tatuzinho indo para o meio da estrada, se colocando entre mim e a
passagem a seguir. Pensei comigo, este danado tá querendo a morte.
Desliguei o motor, desci novamente e tentei espantar o bicho
para o canto. Mas ele ficou ali como mula empacada. Peguei-o no colo e
coloquei-o no meio do milharal que crescia na margem da estrada. Subi e virei a
chave. Não andei nem meio metro e sai o tatu do meio dos pés de milho mais
adiante. Vinha correndo com suas patas curtas para parar justo na curva de chão
batido.
Já comecei a pensar em alma penada. Fiz o nome do pai e desci meio
desconfiado. Procurei pelos lados para ver se não enxergava alma deste ou de
outro mundo. Apenas um vento fraco fazia as folhas de milho balançarem,
formando um som que até me agradava, mas que naquele instante começava a me dar
arrepios.
Olhei o tatu nos olhos. O bicho parado. Desviou o olhar,
depois, lentamente mexeu o rabinho e mais nada. Deu pena e mais uma vez
peguei-o no colo e, desta vez, coloquei-o na beirada da estrada na direção
contrária a que eu seguia. Subi e fiquei procurando o bicho pelo retrovisor,
mas que bobagem a minha. De tão pequeno, não poderia mesmo enxergá-lo.
Liguei o motor e pisei levemente no acelerador. Fui
observando para ver se via o bicho na estrada à medida que tomava distância. Em
vão. Desapareceu como havia aparecido.
Neste instante meu tio parava de contar o causo e saboreava
demoradamente o café que minha avó havia lhe servido. Na verdade, ele saboreava
observar nossos olhares atentos ávidos para saber o que havia acontecido com o
pequeno tatu. Foi quando minha avó disse:
- Continua Olímpio, que você vai matar essa meninada de
tanta curiosidade.
- Pois então, minha
mãe. Andei 200 km de estrada de chão até pegar a estrada principal. (Nova pausa
para o café). E quando, enfim, encontrei um posto para abastecer, foi que
percebi que da boleia havia caído um pedaço de saco de linho, onde o danado do
tatu cravou as unhas e seguiu viagem de carona. Ele veio surfando de um lado
para o outro e eu nem percebi a toada deste maroto. Agora está aí.
- E o que você vai fazer com ele, meu tio? Perguntei,
ansiosa, já sonhando em levá-lo comigo para o apartamento da Tijuca quando as
férias de verão acabassem.
- Vou comer, ora essa!
Fiquei horrorizada. Como teria coragem de comê-lo depois de tudo
o que passaram juntos?
- É que ele não olhou nos meus olhos, respondeu meu tio que
a estas horas já me encarava no fundo da minha íris, com o corpo arqueado e os
braços apoiados nos joelho. Um olhar que pedia reverência e respeito aos mais
velhos.
Baixei meu olhar e sai calada sem saber o que fazer.
De repente, todos da família e os vizinhos haviam sido
avisados que ia ter tatu assado no dia seguinte.
Pois o fato é que quando meu tio foi tirar o bichinho do
saco, ele o encarou de perto, parecendo que havia escutado toda a história,
olhou fundo nos olhos do meu tio, que não pode mais fazer guisado.
O tatu-canastra viveu solto na casa de minha avó por muitos
anos, se enroscando entre os pés de goiaba e a horta de ora-prono-bis. Um belo
dia, como veio se foi, sem deixar rastro. No mesmo dia em que meu tio
faleceu.