"Absinto" é uma bebida destilada feito da erva Artemisia absinthium. Anis, funcho e por vezes outras ervas compõem a bebida. Ela foi criada e utilizada primeiramente como remédio pelo Dr. Pierre Ordinaire, médico francês que vivia em Couvet na Suíça por volta de 1792.É também conhecido popularmente de fada verde em virtude de um suposto efeito alucinógeno. Absinto, o blog, é um espaço para delírios pessoais e coletivos. Absinte-se e boa leitura.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Café sem capuccino


Respingo de chuva incomoda. Mesmo sendo chuva rasa. Ele já havia molhado boa parte das calças de sarja cor de areia. Os sapatos tipo tênis estavam encharcados. Bueiros de metrópoles transbordam logo, como a paciência das pessoas que mudam de humor na mesma velocidade que os semáforos. O suéter vermelho, jogado sem compromisso pelos ombros, cobria a camisa verde e, de alguma maneira, velava o rosto do rapaz. A barba por fazer, os olhos tensos, a boca era a única parte do seu corpo que restava seca.

Entrou no bar e pediu um café. Como sempre. Amargo e forte. Sentado no balcão, ocupava aquele estado de corpo e de espírito em que não podemos ser notados. Por isso, também não pode perceber quando a moça morena de olhos negros passou por ele quase esbarrando em seu braço. A moça também não poderia tê-lo visto e só por isso seguiu seu caminho para todo o sempre.
 
 
Diego continuou sentado com o olhar perdido. Tirou do bolso o celular e pensou em ligar. Tecla Redial. Mas faltou a coragem ou teria sido tomado pelo excesso de orgulho. O fato é que não estava disposto a pedir desculpas. E não pediu. Acabou de tomar o café. Procurou a letra B em sua lista de contatos e deletou o seu número. Pagou a conta e seguiu pela chuva fina. Ao dobrar a esquina, ouviu de um ambulante que vendia guarda-chuvas: “Chuva de molhar bobo”.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

O velho jardineiro



Era uma rua comprida e sem saída, onde na última casa, a mais larga de todas, ocupando dois quarteirões, morava um senhor de muitos anos. Tantos que ninguém arriscava a dizer quantos. Talvez nem tantos, se fôssemos observar o andar esguio e reto. O tônus dos braços bem torneados ainda podia ser notado quando ele usava camisas de mangas curtas. Era um homem misterioso, como todos que vivem na solidão. Poucas palavras, poucos sorrisos. Mas o que deixava claro o sinal dos anos vividos era o olhar perdido, muito além das rugas colecionadas em sua face.

O homem levantava cedo pelas manhãs e cuidava dos jardins de toda a vizinhança em um raio de 10 quilômetros por ali. Chegava, botava preço no serviço, que era alto, mas pago de bom agrado, depois que viam o capricho com que cumpria a tarefa confiada.

Gostava mesmo de trabalhar em dias que sucediam nuvens de água. Terrinha boa era aquela, vinha com cheiro de chuva. Metia as mãos até o fundo e remexia tudo, minhocas, cascas de caramujos. Dava um prazer danado desmanchar os torrões de terra. Dedos esmagadores.  Por horas passava assim, replantando vasos, retirando mudas, fazendo a poda.

Por muitas vezes entrava nas casas sem ser notado e, assim como entrava, saia. Porém, quando terminava o seu ofício, o que ficava não era um jardim capinado, era mais como uma pintura de Monet, sendo possível a quem passasse sentir até mesmo o aroma de tinta fresca, tão vivo era o verde das folhas e o colorido das flores. Um toque mágico vinha daquele velho homem. Com cabelos grisalhos e um rosto marcado como sulcos em terra seca, agia delicadamente, a pesar dos dedos grossos e pesados da lida.

José Euzébio de Jesus era o seu nome de batismo, mas há muitos anos era conhecido como Zé Bezouro. Morava no fim da rua e quase não recebia visitas. O muro alto era feito de um emaranhado de enormes coras de cristo que alcançavam a espantosa marca dos dois metros e meio de altura. Um caramanchão de bougainvilles vermelhas cobria a entrada principal, onde de ambos os lados, guardavam a moradia altivas espadas de São Jorge. Era tudo o que se conseguia ver da casa de Zé Besouro.

Diziam as más línguas que o apelido era por conta das ferroadas que ele dava àqueles que queriam se chegar sem ser convidado. Mas não era verdade.

Um dia de chuva fina, um carro espaçoso e moderno parou na porta de sua casa. De dentro saiu uma moça de cabelos cor de trigo e pele tão branca que parecia nunca ter se aquecido ao sol. A moça nunca havia sido vista por ali, mas tinha as chaves do portão de cedro da casa de Zé Besouro.

Ela abriu o portão há muitos anos fechado, entrou com o carro, deixando a passagem livre para quem quisesse entrar também. E muitos foram o que assim fizeram. Um a um, olhares curiosos seguiram os passos da moça branca de cabelos cor de trigo.

Era uma casa pequena cercada de um imenso jardim. Jasmins, hibiscos, hortênsias, jabuticabas, mangas, laranjeiras. Uma horta bem cuidada com hortelã, couve-manteiga, salsa e cebolinha. Mas o que mais chamava atenção era um imenso campo de roseiras com pequenas placas fincadas em cada uma delas. 

Mais tarde os vizinhos ficaram sabendo. A cada amigo falecido, Zé Besouro havia plantado uma roseira. Todas devidamente com os nomes de seus homenageados. As roseiras tomavam conta da maior parte do terreno que se perdia de vista à medida que se avançava por dentro dele. Eram muitos os amigos de Zé Besouro. Talvez porque o tempo houvesse aparentemente se esquecido dele, o velho homem, de tão cansado, teria se cansado também de fazer amigos.

A moça branca de cabelos de trigo estava ali para enterrar o tio-avô e cumprir seu último desejo. A casa das rosas teve seus portões arrancados transformando-se em um jardim aberto a todos que por ali passassem. No centro do jardim, bem no meio onde antes havia a casa de Zé Besouro, uma roseira branca foi plantada. E dela nasceram rosas tão brancas, como a moça. Mas tão brancas que pareciam terem saído de uma pintura de Monet.

Quem cuidava do jardim? Ninguém sabe dizer ao certo. Talvez as almas amadas que por ali foram por tanto tempo cultivadas na lembrança, talvez anjos, talvez.

terça-feira, 15 de maio de 2012

O tatu



Contar histórias é um dom que um dia eu espero alcançar.

Meu tio contava histórias muito bem. Sabia valorizar cada cena, cada pausa para tirar de nós o mais profundo suspiro de agonia do que viria depois.
Certo dia ele chegou tarde à casa de minha avó, com um saco de mandioca nas costas e outro com um bicho amarrado. Ficamos todos curiosos para saber o que estaria ali dentro. Seria um leitão? Um gato do mato? Era um tatu. Um tatu-canastra, hoje em risco de extinção. Um tatu bravo que meu tio foi contando como achou.

- Eu estava vindo para cá com a caminhonete e parei no meio da estrada para descansar um pouco, beber um pouco d´água antes de seguir viagem. Em dias quentes, viajar em chão de terra parece que acalora mais a gente. 

Quando pus a ligar o carro, ouvi um gemido estranho. Pois o tatu havia entrado debaixo da caminhonete e, sabe lá como, ficado preso no fundo. Até agora estou sem entender como o bicho foi parar lá. O fato é que o peguei no colo e coloquei-o na beirada do caminho e já ia pegando o volante, quando vi o tatuzinho indo para o meio da estrada, se colocando entre mim e a passagem a seguir. Pensei comigo, este danado tá querendo a morte. 

Desliguei o motor, desci novamente e tentei espantar o bicho para o canto. Mas ele ficou ali como mula empacada. Peguei-o no colo e coloquei-o no meio do milharal que crescia na margem da estrada. Subi e virei a chave. Não andei nem meio metro e sai o tatu do meio dos pés de milho mais adiante. Vinha correndo com suas patas curtas para parar justo na curva de chão batido. 

Já comecei a pensar em alma penada. Fiz o nome do pai e desci meio desconfiado. Procurei pelos lados para ver se não enxergava alma deste ou de outro mundo. Apenas um vento fraco fazia as folhas de milho balançarem, formando um som que até me agradava, mas que naquele instante começava a me dar arrepios.

Olhei o tatu nos olhos. O bicho parado. Desviou o olhar, depois, lentamente mexeu o rabinho e mais nada. Deu pena e mais uma vez peguei-o no colo e, desta vez, coloquei-o na beirada da estrada na direção contrária a que eu seguia. Subi e fiquei procurando o bicho pelo retrovisor, mas que bobagem a minha. De tão pequeno, não poderia mesmo enxergá-lo.

Liguei o motor e pisei levemente no acelerador. Fui observando para ver se via o bicho na estrada à medida que tomava distância. Em vão. Desapareceu como havia aparecido.

Neste instante meu tio parava de contar o causo e saboreava demoradamente o café que minha avó havia lhe servido. Na verdade, ele saboreava observar nossos olhares atentos ávidos para saber o que havia acontecido com o pequeno tatu. Foi quando minha avó disse:

- Continua Olímpio, que você vai matar essa meninada de tanta curiosidade.

- Pois então, minha mãe. Andei 200 km de estrada de chão até pegar a estrada principal. (Nova pausa para o café). E quando, enfim, encontrei um posto para abastecer, foi que percebi que da boleia havia caído um pedaço de saco de linho, onde o danado do tatu cravou as unhas e seguiu viagem de carona. Ele veio surfando de um lado para o outro e eu nem percebi a toada deste maroto. Agora está aí.

- E o que você vai fazer com ele, meu tio? Perguntei, ansiosa, já sonhando em levá-lo comigo para o apartamento da Tijuca quando as férias de verão acabassem. 

- Vou comer, ora essa!

Fiquei horrorizada. Como teria coragem de comê-lo depois de tudo o que passaram juntos?

- É que ele não olhou nos meus olhos, respondeu meu tio que a estas horas já me encarava no fundo da minha íris, com o corpo arqueado e os braços apoiados nos joelho. Um olhar que pedia reverência e respeito aos mais velhos.

Baixei meu olhar e sai calada sem saber o que fazer.

De repente, todos da família e os vizinhos haviam sido avisados que ia ter tatu assado no dia seguinte.

Pois o fato é que quando meu tio foi tirar o bichinho do saco, ele o encarou de perto, parecendo que havia escutado toda a história, olhou fundo nos olhos do meu tio, que não pode mais fazer guisado. 

O tatu-canastra viveu solto na casa de minha avó por muitos anos, se enroscando entre os pés de goiaba e a horta de ora-prono-bis. Um belo dia, como veio se foi, sem deixar rastro. No mesmo dia em que meu tio faleceu. 

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Desvelo


Olhar dentro do olho é coisa de gente doida, parece. Ninguém olha profundo, Olha no além, aquele olhar perdidim sem entregas nem compromisso. Olhar subterfujo.

Desafio a você a olhar dentro dos meus olhos. Sabe que cor eles são? Sabe se têm brilho ou não? Eles sorriem para você ou estão opacos como gata parindo a cria?

Meus olhos são castanhos escuros. Não são azuis, nem verdes, nem negros como jabuticabas. São comuns à América Latina onde nasci. Mas eles sorriem. Quase sempre.

Devolvo o desafio. Esta semana quero te olhar de perto, bem de pertim mesmo. Dentro de ti, através da sua íris. Quero ver se está feliz ou triste, como se me encarasse no espelho.

O olhar deveria ser diagnóstico de exame médico. Não o fundo, o branco, o entorno e contorno. Lá dentro, na menina (dos olhos), saltam todas as mazelas, todos os dengos. Salta a vida.

Quando olhar dentro dos meus olhos, verá o quanto de mim pode conhecer. Encontro em ti um infinito de possibilidades. Entrego a mim um infinito de procuras. Mas só se olhar, dentro dos meus olhos.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Lua branca


Foto de Jeanne Look, Florianópolis

Esta semana tem lua cheia. A mais bela de todas.
De tão cheia e brilhante dá até vontade de uivar para ela.
Lua,lua,lua, impossível ser insensível a ela. Mesmo o instante sendo triste.
Mesmo que eu estivesse na mais profunda apatia, nem que fosse para invejá-la, ainda sim eu a admiraria.

Soberana, dona de si. Até o sol a ela se rende, posto que a ela o astro-rei empresta seu brilho mais bonito, transformando o céu em branco-neve.
Lua mulher, encantadora, perfeita em suas curvas, dona de si.

A claridade invade o quarto. Corro lá fora para ver a deusa-branca sobre o verde das árvores no quintal já anoitecido. Da claraboia, boia o delírio de prata.

Esta noite não é para ser dormida nem sonhada.

sábado, 5 de maio de 2012

Histamina

Definitivamente tenho uma incompatibilidade com tapetes. Falo daqueles grandes, felpudos, que decoram o chão em baixo da mesa de jantar.
Por de baixo do tapete sempre se esconde alguma coisa não muito agradável.
Restos de comida, poeira mal varrida, chão arranhado. O cheiro de casa fechada é mais forte quando se há tapetes espessos.Tapetes são como pessoas obscuras. Acumulam sujeiras e me causam alergia.
Tenho alergia crônica à falsidade.

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal aprovando a interrupção da gravidez de anencéfalos me deu vontade de escrever e pensar sobre o assunto. Há anos sou ativista do parto humanizado e do respeito ao direito da mulher escolher o seu parto. Digo isso porque, misteriosamente, embora pesquisas apontem que cerca de 70% a 80% das mulheres brasileiras desejam um parto normal para os seus filhos, apenas uma média de 10% conseguem. Veja artigo publicado no site Guia do Bebe.

A mulher do século XXI, vivendo no mundo ocidental, ainda sofre muita violência. E existe um tipo de violência pouco discutida e pouco difundida em nossa sociedade. Todos os dias, centenas de mulheres são violentadas no momento que lhe deveria ser mais sagrado, o momento do nascimento de um filho. E o mais absurdo ainda, a grande maioria nem chega a ter consciência desta violência. Outras acreditam que é assim mesmo que deve ser.

No Brasil de hoje, se uma grávida tem um plano de saúde e tiver condições financeiras para um parto particular, pode contar que será levada a ser submetida a uma cesariana. Ótimo, se este for o desejo da futura mamãe. Mas o que dizer da enorme estatística que inicia uma gestação sonhando com um parto normal que não se realiza? Enquanto isso no SUS, mulheres são moralmente agredidas com frases do tipo ”na hora de fazer, você não pensou na dor, agora aguenta”. Achou forte? Mas é bem mais comum do que o leitor imagina. E não para só por aí.

O que tem de comum entre a decisão do Supremo e o desejo feminino de se ter um parto normal? Direito de escolha. Este é o ponto. E quando este direito é negado, seja legalmente, seja por desculpas mal dadas que levam milhares de mulheres a uma cirurgia cesariana todos os dias, este é sim também um ato de violência.

Sobre a falsidade, quero apenas dizer que parabenizo médicos cesaristas que deixam claro na primeira consulta que não fazem parto normal. Eles, pelo menos, dão a gestante a oportunidade de saírem de seus consultórios e buscarem (sabe lá aonde ainda existam) profissionais dispostos a apoiá-las em suas escolhas.

Em tempo, cesariana é muito bem-vinda. Apenas em casos de verdadeira necessidade.