"Absinto" é uma bebida destilada feito da erva Artemisia absinthium. Anis, funcho e por vezes outras ervas compõem a bebida. Ela foi criada e utilizada primeiramente como remédio pelo Dr. Pierre Ordinaire, médico francês que vivia em Couvet na Suíça por volta de 1792.É também conhecido popularmente de fada verde em virtude de um suposto efeito alucinógeno. Absinto, o blog, é um espaço para delírios pessoais e coletivos. Absinte-se e boa leitura.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

O velho jardineiro



Era uma rua comprida e sem saída, onde na última casa, a mais larga de todas, ocupando dois quarteirões, morava um senhor de muitos anos. Tantos que ninguém arriscava a dizer quantos. Talvez nem tantos, se fôssemos observar o andar esguio e reto. O tônus dos braços bem torneados ainda podia ser notado quando ele usava camisas de mangas curtas. Era um homem misterioso, como todos que vivem na solidão. Poucas palavras, poucos sorrisos. Mas o que deixava claro o sinal dos anos vividos era o olhar perdido, muito além das rugas colecionadas em sua face.

O homem levantava cedo pelas manhãs e cuidava dos jardins de toda a vizinhança em um raio de 10 quilômetros por ali. Chegava, botava preço no serviço, que era alto, mas pago de bom agrado, depois que viam o capricho com que cumpria a tarefa confiada.

Gostava mesmo de trabalhar em dias que sucediam nuvens de água. Terrinha boa era aquela, vinha com cheiro de chuva. Metia as mãos até o fundo e remexia tudo, minhocas, cascas de caramujos. Dava um prazer danado desmanchar os torrões de terra. Dedos esmagadores.  Por horas passava assim, replantando vasos, retirando mudas, fazendo a poda.

Por muitas vezes entrava nas casas sem ser notado e, assim como entrava, saia. Porém, quando terminava o seu ofício, o que ficava não era um jardim capinado, era mais como uma pintura de Monet, sendo possível a quem passasse sentir até mesmo o aroma de tinta fresca, tão vivo era o verde das folhas e o colorido das flores. Um toque mágico vinha daquele velho homem. Com cabelos grisalhos e um rosto marcado como sulcos em terra seca, agia delicadamente, a pesar dos dedos grossos e pesados da lida.

José Euzébio de Jesus era o seu nome de batismo, mas há muitos anos era conhecido como Zé Bezouro. Morava no fim da rua e quase não recebia visitas. O muro alto era feito de um emaranhado de enormes coras de cristo que alcançavam a espantosa marca dos dois metros e meio de altura. Um caramanchão de bougainvilles vermelhas cobria a entrada principal, onde de ambos os lados, guardavam a moradia altivas espadas de São Jorge. Era tudo o que se conseguia ver da casa de Zé Besouro.

Diziam as más línguas que o apelido era por conta das ferroadas que ele dava àqueles que queriam se chegar sem ser convidado. Mas não era verdade.

Um dia de chuva fina, um carro espaçoso e moderno parou na porta de sua casa. De dentro saiu uma moça de cabelos cor de trigo e pele tão branca que parecia nunca ter se aquecido ao sol. A moça nunca havia sido vista por ali, mas tinha as chaves do portão de cedro da casa de Zé Besouro.

Ela abriu o portão há muitos anos fechado, entrou com o carro, deixando a passagem livre para quem quisesse entrar também. E muitos foram o que assim fizeram. Um a um, olhares curiosos seguiram os passos da moça branca de cabelos cor de trigo.

Era uma casa pequena cercada de um imenso jardim. Jasmins, hibiscos, hortênsias, jabuticabas, mangas, laranjeiras. Uma horta bem cuidada com hortelã, couve-manteiga, salsa e cebolinha. Mas o que mais chamava atenção era um imenso campo de roseiras com pequenas placas fincadas em cada uma delas. 

Mais tarde os vizinhos ficaram sabendo. A cada amigo falecido, Zé Besouro havia plantado uma roseira. Todas devidamente com os nomes de seus homenageados. As roseiras tomavam conta da maior parte do terreno que se perdia de vista à medida que se avançava por dentro dele. Eram muitos os amigos de Zé Besouro. Talvez porque o tempo houvesse aparentemente se esquecido dele, o velho homem, de tão cansado, teria se cansado também de fazer amigos.

A moça branca de cabelos de trigo estava ali para enterrar o tio-avô e cumprir seu último desejo. A casa das rosas teve seus portões arrancados transformando-se em um jardim aberto a todos que por ali passassem. No centro do jardim, bem no meio onde antes havia a casa de Zé Besouro, uma roseira branca foi plantada. E dela nasceram rosas tão brancas, como a moça. Mas tão brancas que pareciam terem saído de uma pintura de Monet.

Quem cuidava do jardim? Ninguém sabe dizer ao certo. Talvez as almas amadas que por ali foram por tanto tempo cultivadas na lembrança, talvez anjos, talvez.

10 comentários:

  1. Vê , vê bem
    Não estará, nesse jardim, uma roseira para mim também?

    Falta-me um Zé Besouro no meu bairro ( mesmo se cansado de fazer amigos)

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  2. Querido Rogerito, sei que bem falta tempo para isto. Mas, gostei da ideia de plantar roseiras aos amigos, por que esperar a passagem, se posso fazer isso agora?

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  3. Ahhhh, que delícia sensorial, Malu! Hoje estou num estado que tudo me toca os sentidos com delicadeza e firmeza ao mesmo tempo... que gostosa sensação de pertencimento a esse jardim de roseiras...!

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  4. Zé Besouro, um personagem em seu mundo e talvez um personagem que nos faz falta

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  5. Texto lindo... quase cinematográfico! Transformei teu texto em cenas imaginárias!
    Parabéns!!!

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  6. Texto lindo... quase cinematográfico! Transformei teu texto em imagens mentais! Parabéns!

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  7. Oi Malu,

    Belo e sensivel conto escrito por quem diz não saber contar estorias...rsrs

    bjo procê

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  8. Malu
    Maravilha, adorei, afinal para quando o livro?
    Sabes amiga é de uma sensibilidade a forma como contas a história que me deixei envolver, por momentos tive a sensação de conhecer a casa do Zé Besouro.

    Beijinho e uma flor

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  9. Malu, quando comecei a ler, juro que fui imaginando o local. Pensei: Malu deve ter vivido em interior. Porque eu me senti dentro da sua explanação. Conheço pessoas com esse perfil. Inclusive, na minha cidade, existe um homem, O Sr, Zé, que toma conta da praça perto da minha casa. Ai de quem arranque uma florzinha ! Muito linda sua descrição! Prendeu minha atenção. De uma sensibilidade enorme: tem começo, meio e fim ( e que fim !). Bom, você está de parabéns e deve continuar investindo. Amei a mocinha ser clarinha !!!! Branquinha !!!! Lindo Malu ! Lindo mesmo !!!

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  10. Visito seu blog pela primeira vez, adorei seu texto profundamente sensível e de muito bom-gosto. Se puder, dê uma passadinha pelo meu blog, também tenho um espaço como o seu para postagens literárias. Boa-sorte e parabéns pelo texto.

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