Era uma rua comprida e sem saída,
onde na última casa, a mais larga de todas, ocupando dois quarteirões, morava
um senhor de muitos anos. Tantos que ninguém arriscava a dizer quantos. Talvez
nem tantos, se fôssemos observar o andar esguio e reto. O tônus dos braços bem
torneados ainda podia ser notado quando ele usava camisas de mangas curtas. Era
um homem misterioso, como todos que vivem na solidão. Poucas palavras, poucos
sorrisos. Mas o que deixava claro o sinal dos anos vividos era o olhar perdido,
muito além das rugas colecionadas em sua face.
O homem levantava cedo pelas
manhãs e cuidava dos jardins de toda a vizinhança em um raio de 10 quilômetros
por ali. Chegava, botava preço no serviço, que era alto, mas pago de bom agrado,
depois que viam o capricho com que cumpria a tarefa confiada.
Gostava mesmo de trabalhar em
dias que sucediam nuvens de água. Terrinha boa era aquela, vinha com cheiro de
chuva. Metia as mãos até o fundo e remexia tudo, minhocas, cascas de caramujos.
Dava um prazer danado desmanchar os torrões de terra. Dedos esmagadores. Por horas passava assim, replantando vasos,
retirando mudas, fazendo a poda.
Por muitas vezes entrava nas
casas sem ser notado e, assim como entrava, saia. Porém, quando terminava o seu
ofício, o que ficava não era um jardim capinado, era mais como uma pintura de
Monet, sendo possível a quem passasse sentir até mesmo o aroma de tinta fresca,
tão vivo era o verde das folhas e o colorido das flores. Um toque mágico vinha
daquele velho homem. Com cabelos grisalhos e um rosto marcado como sulcos em
terra seca, agia delicadamente, a pesar dos dedos grossos e pesados da lida.
José Euzébio de Jesus era o seu
nome de batismo, mas há muitos anos era conhecido como Zé Bezouro. Morava no
fim da rua e quase não recebia visitas. O muro alto era feito de um emaranhado
de enormes coras de cristo que alcançavam a espantosa marca dos dois metros e
meio de altura. Um caramanchão de bougainvilles vermelhas cobria a entrada
principal, onde de ambos os lados, guardavam a moradia altivas espadas de São
Jorge. Era tudo o que se conseguia ver da casa de Zé Besouro.
Diziam as más línguas que o
apelido era por conta das ferroadas que ele dava àqueles que queriam se chegar
sem ser convidado. Mas não era verdade.
Um dia de chuva fina, um carro espaçoso
e moderno parou na porta de sua casa. De dentro saiu uma moça de cabelos cor de
trigo e pele tão branca que parecia nunca ter se aquecido ao sol. A moça nunca
havia sido vista por ali, mas tinha as chaves do portão de cedro da casa de Zé
Besouro.
Ela abriu o portão há muitos anos
fechado, entrou com o carro, deixando a passagem livre para quem quisesse
entrar também. E muitos foram o que assim fizeram. Um a um, olhares curiosos
seguiram os passos da moça branca de cabelos cor de trigo.
Era uma casa pequena cercada de
um imenso jardim. Jasmins, hibiscos, hortênsias, jabuticabas, mangas,
laranjeiras. Uma horta bem cuidada com hortelã, couve-manteiga, salsa e
cebolinha. Mas o que mais chamava atenção era um imenso campo de roseiras com
pequenas placas fincadas em cada uma delas.
Mais tarde os vizinhos ficaram
sabendo. A cada amigo falecido, Zé Besouro havia plantado uma roseira. Todas
devidamente com os nomes de seus homenageados. As roseiras tomavam conta da
maior parte do terreno que se perdia de vista à medida que se avançava por
dentro dele. Eram muitos os amigos de Zé Besouro. Talvez porque o tempo
houvesse aparentemente se esquecido dele, o velho homem, de tão cansado, teria
se cansado também de fazer amigos.
A moça branca de cabelos de trigo
estava ali para enterrar o tio-avô e cumprir seu último desejo. A casa das
rosas teve seus portões arrancados transformando-se em um jardim aberto a todos
que por ali passassem. No centro do jardim, bem no meio onde antes havia a casa
de Zé Besouro, uma roseira branca foi plantada. E dela nasceram rosas tão
brancas, como a moça. Mas tão brancas que pareciam terem saído de uma pintura
de Monet.
Quem cuidava do jardim? Ninguém
sabe dizer ao certo. Talvez as almas amadas que por ali foram por tanto tempo
cultivadas na lembrança, talvez anjos, talvez.
Vê , vê bem
ResponderExcluirNão estará, nesse jardim, uma roseira para mim também?
Falta-me um Zé Besouro no meu bairro ( mesmo se cansado de fazer amigos)
Querido Rogerito, sei que bem falta tempo para isto. Mas, gostei da ideia de plantar roseiras aos amigos, por que esperar a passagem, se posso fazer isso agora?
ResponderExcluirAhhhh, que delícia sensorial, Malu! Hoje estou num estado que tudo me toca os sentidos com delicadeza e firmeza ao mesmo tempo... que gostosa sensação de pertencimento a esse jardim de roseiras...!
ResponderExcluirZé Besouro, um personagem em seu mundo e talvez um personagem que nos faz falta
ResponderExcluirTexto lindo... quase cinematográfico! Transformei teu texto em cenas imaginárias!
ResponderExcluirParabéns!!!
Texto lindo... quase cinematográfico! Transformei teu texto em imagens mentais! Parabéns!
ResponderExcluirOi Malu,
ResponderExcluirBelo e sensivel conto escrito por quem diz não saber contar estorias...rsrs
bjo procê
Malu
ResponderExcluirMaravilha, adorei, afinal para quando o livro?
Sabes amiga é de uma sensibilidade a forma como contas a história que me deixei envolver, por momentos tive a sensação de conhecer a casa do Zé Besouro.
Beijinho e uma flor
Malu, quando comecei a ler, juro que fui imaginando o local. Pensei: Malu deve ter vivido em interior. Porque eu me senti dentro da sua explanação. Conheço pessoas com esse perfil. Inclusive, na minha cidade, existe um homem, O Sr, Zé, que toma conta da praça perto da minha casa. Ai de quem arranque uma florzinha ! Muito linda sua descrição! Prendeu minha atenção. De uma sensibilidade enorme: tem começo, meio e fim ( e que fim !). Bom, você está de parabéns e deve continuar investindo. Amei a mocinha ser clarinha !!!! Branquinha !!!! Lindo Malu ! Lindo mesmo !!!
ResponderExcluirVisito seu blog pela primeira vez, adorei seu texto profundamente sensível e de muito bom-gosto. Se puder, dê uma passadinha pelo meu blog, também tenho um espaço como o seu para postagens literárias. Boa-sorte e parabéns pelo texto.
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