Do meu avó paterno, herdei o gosto pelas coisas míticas, pela arte em madeira, um banquinho e um velho baú.
O banquinho sumiu no meio dos meus anos sem deixar rastro. O baú, ainda cumpre o discreto papel de guardar segredos.
Dele posso tirar um vestido preto que só a mim revela lembranças inconfessáveis. A primeira roupa do meu filho, um álbum antigo de fotos de família, uma caixa aonde guardo antigas cartas desde o tempo de colégio.
O baú de meu avô tem tesouros só meus, como pedrinhas retiradas do riacho, lembrança do dia mais feliz de minha infância na fazenda – o primeiro banho de cachoeira sem biquíni aos oito anos de idade.
De um lado do rio, mulheres e crianças, do outro, os homens. Entre eles, uma montanha intransponível vigiada pelos mais velhos com rigor de quem guardava as muralhas da China. Milho assado na fogueira, passeio a cavalo, coisas do interior.
Cada peça me remete a outra fração da minha memória. A primeira vez no leme de uma embarcação, as cachoeiras de Teresópolis, verão em Ibitipoca, outono em Abrolhos, aonde fiz meu primeiro mergulho noturno, inverno em Ouro Preto, todas as estações com toques de primaveras.
Lembro da cada passagem com carinho. As boas e as más. Engraçado como que com o passar dos anos essas últimas vão se desbotando e as primeiras ganham uma tintura especial. E as ruas vão ficando maiores, os rios mais cheios e as pessoas da nossa caminhada se tornam únicas.
Ao mexer neste baú, fico pensando se meu avô, quando deixou este legado, imaginava o quanto esta peça utilitária de tempos em tempos revolveria a minha alma.
E como Augustine no filme Uma vida iluminada, descubro que revolvemos a alma pela simples razão da existência dos acontecimentos. Objetos, imagens, renovam o prazer de se sentir viva.
Que lindo texto, Malu. Você me surpreende sempre com essa alma que derrama uma certa poesia sobre nós. É muito bom que compartilhe isso com a gente. E, aliás, quem não tem seus baús, tesouros que só crescem com o tempo?
ResponderExcluirMuito poético esse seu desvendar de segredos, lembranças e mistérios guardados num baú antigo. E sendo uma herança de avô, que nos remete a essa figura carinhosa da infância torna o texto ainda mais lindo.
ResponderExcluirQue delícia de texto, Malu. Me lembrou a caixa de Pandora, aquela que na mitologia guardava todos os "males" que poderiam afligir os homens. Para nós, aquela que guardamos os mais íntimos segredos em objetos, imagens, cheiros, alfarrábios dos mais diversos, e que são capazes de nos transportar para lugares memoráveis. De vez em quando abro a minha e entro nessa viagem fantástica que é a minha vida. Um beijo, com saudades Mônica Miguel
ResponderExcluirLindo Malú, parabéns! Bj Marco
ResponderExcluirestou maravilhada, e pensando porque meu baú não existe, ou melhor, porque minha casa inteira é um baú...
ResponderExcluirIsso, Deborah. O baú é metafórico. Precisamos ver para lembrar? Alguns objetos atiçam a memória. Outras lembranças não precisam de imagens tão concretas.
ResponderExcluirObrigado Malu por nos "revelar" o seu Baú com suas cores e sua sensibilidade. Seus tesouros, memoriais, iluminam sua alma e irradiam, em palavras, um pouco da sua generosidade em compartilhar conosco prazeres de vida, representada por objetos e imagens ressignificadas...bjos
ResponderExcluirQuisera um baú tão rico como esse!
ResponderExcluirMas suspeito que cada um de nós tem um dentro de si.
Lindo texto!
Obrigada por partilhá-lo e por visitar meu blog.