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Ardentia do Mar |
Contar histórias é um dom que
invejo e almejo. Aquele contar despojado de quem faz de uma boa história até o
beber de um copo d’água. São pessoas que têm prazer na conversa presencial, sem
pressa, coisa rara em tempo de smartphones. São pessoas que observam o outro, e em cinco minutos conseguem absorver
o que o outro gosta de comer, vestir e como pensa. E daí puxa a prosa.
Gosto de gente que gosta de
gente. Tenho uma prima assim. Faltando pouco menos de dois meses para completar
um ano de casada, meu pai faleceu. Minha prima, uma das madrinhas, veio me
visitar. Viagem de ônibus, malas e no colo um delicado vaso de lisiantus iguais
aos que usei em meu buquê de noiva. Gentileza de quem enxerga o outro. Só por
isso, teria razões para amá-la o resto de minha vida e terei com ela ainda mais
histórias a compartilhar.
Acabamos de voltar de férias na
praia e por lá cresceu um desejo de mostrar ao meu filho e ao meu marido um
fenômeno que vivenciei há alguns anos. A ardentia do mar, como chamam os
marinheiros, causada pela luz incandescente dos planctos. É com caçar Saci,
cheio de rituais, mas existe. Só se pode ver à noite, em épocas quentes, e em
noites sem lua. É preciso mexer a água para que ela apareça.
E foi aí que encontrei um
ex-pescador que hoje explora esportes aquáticos como caiaque, stad up, entre
outros. E perguntei a ele se conhecia a incrível luminosidade. Ele disse que sim e me deu
dicas de como vê-la naquela mesma praia à noite.
Como que precisando explicar o
meu desejo a um estranho, ou mesmo justificá-lo, falei de meu amor pelo mar. De
como, mesmo nascendo perto do mar, fui levada para longe e minha relação
permanece assim, feita de encontros fugidios.
Foi a sua deixa. Em cinco
minutos contou a vida de seu avô até a sua, me prendendo o olhar e a atenção a
cada palavra:
“Meu avô era português. Conheceu minha avó após a guerra e se casaram.
Seu sonho era vir morar no Brasil. Minha avó engravidou de meu pai e eles
acertaram que, após o nascimento, eles viriam para cá. Mas meu avô tinha ficado
exposto a agentes químicos na guerra. Muito doente, faleceu antes que meu pai
nascesse. Meu pai cresceu ouvindo histórias sobre o desejo de seu pai de atravessar o Atlântico.
Mas até se tornar um adulto, ele nunca havia visto o mar. Morava em uma cidade
do interior de Portugal. Então, um dia meu pai foi conhecer o mar e decidiu que
viria para o Brasil, vivendo o sonho de meu avô. E veio. Aqui, ele trabalhou
com materiais de construção em Brasília e depois mudou-se para o litoral carioca.
Um dia, juntou dinheiro e comprou um barco de pesca para os finais de
semana. Ele e seus amigos portugueses passeavam bastante. Cresci em meio a isso
tudo e em meio as ardentias do mar nas noites de pesca. Quando completei 18
anos, estava decidido a ir para a Marinha. Mas eu e um amigo fazíamos
explosivos caseiros. Nesta época, um deles explodiu e foi aí que perdi minha
mão esquerda. Não pude entrar para a Marinha, então fui arranjar um emprego. Em um
hotel aqui perto, havia vaga para cozinheiro ou marinheiro, escolhi o segundo,
é claro. Ao final do primeiro ano, havia comprado meu primeiro barco e fazia a
travessia dos clientes do hotel, que ficava em uma ilha. Não parei mais e não
me vejo fazendo outra coisa na vida que não seja ligada ao mar”.
Há pessoas que nos tocam com suas
histórias e nos fazem repensar por onde largamos nossos sonhos.